Os segredos de uma Restauração II

13ago16

 

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Há alguns anos, passeando na feira de antiguidades da Praça XV, Rio de Janeiro, achei uma serra de costa que chamou de longe a atenção pelo belíssimo desenho de seu punho. No entanto, o estado do serrote era deplorável, mas por um preço bem razoável o levei para uma possível restauração. Recentemente tenho investindo mais nas serras da nossa oficina, e resolvi também dar uma oportunidade para esta velha serra e integrá-la em nosso expediente.

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A serra de costa antes da restauração.

Neste artigo mostro a restauração de uma serra de costa da marca inglesa Spear & Jackson, do tipo tenon saw. Possui 14″ de comprimento (35,5cm), que serve para trabalhos de marcenaria em geral, devendo produzir cortes de precisão.

 

Spear & Jackson

As raízes da Spear & Jackson datam a partir de 1760, quando o fabricante de cortinas John Love decidiu fundar uma empresa de produtos de aço em Sheffield, Inglaterra, onde a produção de aço, talheres e ferramentas estava concentrado devido a abundância de matérias-primas. Ele associou-se com Spear Alexander, um rico comerciante da cidade vizinha de Wakefield, e a nova empresa recebeu o nome Spear & Love.

Nas décadas seguintes, a empresa passou a se concentrar na produção de serras, e os negócios cresceram. Em 1814, a empresa passou a ser administrada pelo sobrinho de Spear Alexander, John Spear, que, por sua vez, trabalhava com um assistente chamado Sam Jackson. Jackson mostrou ser um notável profissional, e em 1830 associou-se a empresa e esta foi renomeada Spear & Jackson.

A empresa continua a produzir serras e outras ferramentas até os dias atuais, associada a diversas outras marcas conceituadas.

Fonte:  http://www.tfsrcymru.org.uk/wp-content/uploads/2013/01/Spear-Jackson-history-and-billhook-types.pdf

Ao longo dos anos, a Spear & Jackson fabricou serras associada a diferentes marcas. Esta serra apresenta a marca “Laep-Frog”, provavelmente uma das marcas de melhor qualidade associada a Spear & Jackson. Encontrei no “Catalogue of  Saws and Tools, Spear & Jackson, 1923”, a serra de costa nº 46 da marca “Leap-Frog”, idêntica na descrição e no desenho do punho.

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Esta serra corresponde em qualidade com a nossa serra manual nº 24, e é a principal e mais versátil serra do carpinteiro.” O catálogo está disponível para download no site do meu caro amigo Wictor A. Kuc, editor da revista WK Fine Tools:

http://www.library.wkfinetools.com/02_Catalogs/SpearJacks/1923-S&J-Catalog/0_img-pdf/1923-Spear&JacksonCatalogue.pdf.

 

Início da operação

O serrote estava muito danificado, com um dos “chifres” do punho quebrado, com a lâmina empenada e severamente enferrujada, dentes deformados, com marcas profundas da ação do tempo e do mau uso.

Este tipo de serrote tem porcas chatas e redondas,  conectadas aos parafusos que fixam o punho na lâmina. Li diversos artigos sobre as dificuldades de desmontar este tipo de serrote, com o risco principal de quebrar estas porcas. Ademais, são difíceis de encaixar uma chave em sua fenda, pois  são rasas, provavelmente em virtude do fabricante ter faceado o punho com as porcas instaladas. Por isso é necessário avaliar se há a necessidade de desmontar o serrote para restaurá-lo. Este era o caso, devido aos variados danos que apresentava.

Com uma chave improvisada retirei as porcas sem dificuldades. O problema foi retirar os parafusos, que estavam engatados. Mais tarde reparei que os furos da lâmina são precisamente do diâmetro dos parafusos, e qualquer desvio impossibilitaria o seu encaixe. Pois bem, os parafusos estavam todos empenados. Para retirá-los precisei empurrar os parafusos com martelo e repuxo, o que inevitavelmente acabou ferindo o passe e danificando o encaixe com as porcas. Por conseqüência as porcas ficaram inutilizadas, o que me obrigaria a usinar novas porcas.

 

A lâmina

Estava empenada no sentido longitudinal e transversal, encanoada e torcida. Não sei como é possível deformar tanto uma lâmina com a qualidade deste aço. Para desempená-la utilizei um cepo de cumaru com a face reta para deitar a lâmina e um martelo-bola. Golpeei a lâmina rapidamente e com leveza, espalhando os golpes sobre a face convexa, sempre verificando a retidão com o auxílio de uma régua.

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Lâmina resiliente, precisei repetir o trabalho algumas vezes durante o restauro, como se fosse a afinação das cordas de um piano. Desempená-la com as mãos, tentativa inútil. Realmente é impressionante a qualidade deste produto,  reconhecido pela especial constituição de seu aço.

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Os dentes da lâmina estavam completamente disformes e desalinhados. O último sujeito que tentou afiar esta serra o fazia de qualquer maneira. Não havia como recuperar os dentes, por isso retirei-os com uma lima chata, transformando a lâmina numa régua perfeitamente reta.

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Para reformar os dentes utilizei uma serra de costa de 12PPI (11TPI) para servir como gabarito e orientar a lima. Juntei as lâminas e com uma lima triangular fina marquei a lâmina sem dentes. Precisava apenas desta marcação para iniciar a sua reforma.

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O segredo para conseguir fazer 160 dentes iguais, senão bem parecidos, é trabalhar o conjunto dos dentes. Apenas para a reforma dos dentes atravessei a lima quatro vezes por toda a  lâmina, e a cada passagem deslizava duas ou três vezes a lima, não mais.

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Tinha três preocupações para cada golpe de lima:

  1. Manter a lima a 90º nos eixos x, y e z;
  2. Manter a face superior da lima ligeiramente deitada a 20º;
  3. Deslizar a lima duas ou três vezes para frente, sem arrastá-la no retorno. Iniciar o exercício a partir do topo da lâmina em direção ao punho.

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Para saber sempre qual dente era limado, marquei os dentes por cima com caneta Pilot; assim, a cada passagem retirava a marca da caneta. Na reforma dos dentes os golpes de lima são seguidos, um dente após o outro. Para desgastar a lima de maneira uniforme é importante girá-la durante a operação, para utilizar todas as suas arestas. Por fim retirei a rebarba dos dentes deslizando uma pedra diamantada gramatura 600 nas faces da lâmina.

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Uma ótima fonte de informações sobre afiação de serras está na pagina do mestre e designer Morito Ebine, em http://www.moritoebine.com/Afiacao%20Serrote.pdf

 

Limpeza do aço

Para retirar a ferrugem da lâmina e da haste de aço (costa), primeiro submeti as peças a um banho eletrolítico,  técnica que explico no artigo “Os segredos de uma restauração“.

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Uma vez lavadas as peças, utilizei lixas para metal, com graduações 100, 150, 220, 240, 320, 400, 600, e por fim pasta de polir. Utilizar um bloco de lixa evita o desgaste dos dentes, e também promove um lixamento mais uniforme. Utilizei querosene no lixamento,  ajuda a mantê-las desentupidas por mais tempo. Essência de terebintina também é muito utilizado. No entanto é praticamente impossível retirar por completo as profundas erosões causadas pela oxidação, assim como as marcas produzidas pelo uso. É notável como a costa da serra era constantemente retirada, pelas marcas de martelo próxima às suas extremidades.

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Apesar de ainda marcada pela oxidação, ao final obtive um ótimo polimento, o que contribui para o deslizamento da lâmina durante o corte. A haste da costa foi desempenada e recebeu o mesmo tratamento, com o cuidado de preservar as marcas estampadas.

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Porcas e parafusos

Outra providência foi restaurar os parafusos e fabricar novas porcas. Para isso precisava desempená-los e refazer o seu passe. Com um cossinete refiz o passe dos parafusos, mas as porcas originais não serviam mais. Para refazê-las utilizei um torno para madeira e alguns parafusos de latão. A cabeça sextavada do parafuso de 10mm de diâmetro serviu perfeitamente, não poderia ser melhor.

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Dediquei um bom tempo afinando o torno, para que a ponta-motriz e a contra-ponta se alinhassem perfeitamente. Uma vez ajustada a máquina, perfurei logo todos os parafusos. Primeiro marquei o centro com a ponta de uma broca curta, e em seguida perfurei a peça em etapas, pois a velocidade do torno para madeira é muito alta para usinar metais, e é fácil quebrar uma broca fina. Também é importante manter a broca constantemente lubrificada e resfriada com óleo fino durante a operação.

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Para usinar a face e a borda utilizei uma lima velha como bedame. O latão não ofereceu resistência, e permitiu um trabalho extremamente preciso, no calibre do paquímetro. Para polir o metal utilizei apenas uma lixa de óxido de alumínio de graduação 240.

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Com as peças ainda instaladas no torno fiz a rosca interna com um vira macho. Para fazer a fenda nas porcas, utilizei um gabarito para orientar a serra de arco. Após o corte das fendas, retornei os parafusos para o torno e finalmente separei as peças.

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Para terminar, poli as cabeças dos parafusos e do medalhão. No medalhão utilizei o mais doméstico dos produtos abrasivos: pasta de dente. Deixou o medalhão polido e manteve o latão íntegro.

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O punho

No punho, precisei redefinir a profundidade das novas porcas, corrigir a ponta quebrada do “chifre” com uma pequena emenda e dar um novo acabamento em sua madeira. Faia (beech) é a madeira original do punho, das madeiras mais comuns para toda sorte de serras manuais.

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Lixado e remodelado o punho, aprofundei ligeiramente os escariados para encaixar as porcas, mais espessas que as originais.

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Apliquei um tingidor cor mogno para uniformizar seu aspecto. Em seguida apliquei uma fina camada de seladora e encerei o punho, conferindo um aspecto acetinado e suave. Esta peça ficou como nova.

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Lâmina, punho, haste, parafusos prontos. Após conferir o comprimento e a passagem dos parafusos, montei o serrote sabendo que seria uma única vez, pois os parafusos entrariam justos e retirá-los novamente poderia comprometer o seu passe.

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Preferi primeiro montar o punho e a lâmina, para garantir o delicado trabalho de encaixe dos parafusos e, em seguida, encaixar a pesada costa de aço. Ok, sem problemas.  Serrote montado, vamos afiá-lo.

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Travamento e afiação

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Ferramentas de afiação: alicate travador, lima triangular, pincel atômico e paquímetro.

Para este serrote fiz uma afiação comum, mais apropriada para cortes longitudinais, mas que também permite cortes transversais, resultando numa ferramenta versátil.

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Primeiro providenciei a trava (desalinhamento dos dentes).  O corte deve ter uma espessura pouco maior que a espessura da lâmina da serra, ao contrário, a serra pode prender durante o corte. Algumas serras dispensam a trava, quando se trata de cortes muito finos e superficiais. Ao final a trava ficou com 0,4mm a mais que a sua própria espessura de 0,6mm, resultando num corte de 1mm de largura.

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Dentes travados.

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Travados os dentes, procedo a afiação. Com a lima na mesma posição utilizada na reforma dos dentes, esta é passada agora de maneira alternada, apenas nos dentes que apontam para fora da lâmina. Assim, ora afia-se os dentes com a lâmina voltada para um lado, ora com a lâmina voltada para o outro lado. O cuidado com o alinhamento dos dentes deve ser constante.

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Cortes ligeiros, limpos e retos em ambos os sentidos da madeira maciça, com pouca rebarba na saída do corte transversal. Devido a pesada costa deste serrote, ele exige prumo, bastando manter a serra equilibrada para gerar um corte reto.  O punho abraça a mão, o que promove bastante firmeza durante o exercício.

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Satisfeito com a nova ferramenta, tanto quanto fosse uma ferramenta nova!

– Diego de Assis

ATENÇÃO

Diversos procedimentos de oficina oferecem riscos. Por isso devem acompanhar o uso de EPI (Equipamento de Proteção Individual): óculos de proteção, máscara contra pó, protetores auriculares, entre outros dispositivos de segurança. Apenas pessoas capacitadas devem operar máquinas e ferramentas de corte; ao contrário estarão sujeitas a acidentes graves.

 



11 Responses to “Os segredos de uma Restauração II”

  1. 1 Carlos A C Kulicheski

    Parabéns! O seu trabalho resultou em uma obra de arte

  2. Caramba! Que bom que você postou isso, achei o seu blog, mas estava parado… tem muita coisa interessante aqui. Continue o bom trabalho!

  3. 3 JOSE FERNANDO MARINO

    Parabéns, magnifico trabalho.

  4. 4 Ivo de Souza

    Muito bom.
    Tanto o tema como a técnica utilizada e a descrição de seu desenvolvimento, foram cuidadosamente escolhidos e trabalhados. Excelente aula de restauração que não deixa faltar explicação para nenhum detalhe,
    Parabéns,

  5. 5 Leandro Cardoso

    Excelente trabalho, qualidade indiscutível. Parabéns!

  6. 6 diegodeassis

    Muito obrigado, fico muito contente com o interesse de todos!!

  7. Que massa seu post novo, Diego. Gostei muito do trabalho e resultado. Tão bom quanto é sua didática em descrever o processo. Que venham outros. Abraço, Vinicius

  8. 9 Carlos Arruzzo

    Grande Diego! Fui seu aluno por seis meses e espero um dia voltar a frequentar sua oficina … Meu amigo esses seus artigos são dignos de revista , sempre fiquei impressionado com sua dedicação e principalmente paciência na arte da marcenaria. Ainda lembro de seus conselhos quando início um novo projeto trancado em minha pequena oficina… são sempre tantas técnicas aplicadas, que só muito estudo poderia explicar…Você tem um talento único ! Parabéns pelo trabalho!

  9. 11 Ana Paula Correa

    Que trabalho magnífico, bem elaborado e divinamente explicado. Parabéns


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